NAS ASAS DE UMA LATA
É num desses estabelecimentos que encontramos as latas de Adriano C. Oliveira, o "visionário das conservas". Até 2007, este comandante da TAP pouco sabia sobre o setor. Quando criou a Jose Gourmet, a ideia era exportar produtos portugueses prestigiados, com a sua marca e design próprios: azeites, vinhos, conservas. Em pouco tempo, as conservas chegaram à liderança destacada do portfólio (perto de 80% das vendas) e começaram a aparecer nas lojas mais seletas dos EUA e em revistas internacionais sofisticadas, como a Monocle.
O conceito vencedor teve por base duas ideias. Por um lado, identificar quem faz boas conservas e selecionar receitas. Por outro, dar-lhes um embrulho bonito. A imagem da Jose Gourmet é limpa, longe das litografias tradicionais da varina e do lettering com perninhas. Cada lata tem uma obra de arte, normalmente ilustrações feitas propositadamente para aquela receita. O design é da responsabilidade de Luís Mendonça, também conhecido como Gémeo Luís, mas outros ilustradores assinam os desenhos, entre eles André Letria.
Esta sofisticação contrasta com o nome: simples, antigo, português (mas também espanhol, bíblico e universal). A simbiose remete para algo moderno, mas com personalidade — um homem de carne e osso. Jose existe? Não. Jose faz conservas? Não. Funciona? Muito bem.
Este ano, a faturação ainda não deverá passar de €1 milhão. São pozinhos num mercado nacional que representa mais de €320 milhões. Mas já é algo significativo para alguém que só embala e é um neófito na área. A Pinhais, que compra peixe e tem 103 funcionários, fez €4 milhões no ano passado. Mais importante do que a faturação, no entanto, é o crescimento constante: 30% relativamente ao ano passado, diz Adriano C. Ribeiro. E não deve ficar por aqui.
O próximo passo é a construção de uma fábrica em Perafita, onde está também alojada a sede da Ramirez, a mais antiga e maior empresa portuguesa do setor. As instalações já estão arrendadas e Adriano espera começar a produzir em dezembro deste ano.
"Se quiser, pode lá ir ver", convidou Adriano, que recebeu €400 mil para o projeto, apoiado pelo programa Portugal 2020. Uma semana depois, lá estávamos. As obras ainda não tinham arrancado. No armazém, só uma funcionária a embalar conservas e mais duas pessoas, uma delas Elisabete Macedo, apresentada como futura diretora-geral. Adriano tinha explicado a contratação de Elisabete como um "turn over à La Gondola", onde a Jose Gourmet se abasteceu até 2016. Nesse ano, a empresa terá deixado de produzir conservas de especialidade. Pertencente à A Poveira, uma das três maiores conserveiras portuguesas, comprada recentemente pela Frinsa (um colosso das conservas espanholas), a La Gondola "dedica-se hoje em dia à limpeza de atum". Sentada com a planta da nova fábrica à frente, Elisabete Macedo explica que a unidade terá cozinha de preparação e investigação. Vai "ser algo nunca visto em Portugal e no mundo".
Até lá é preciso continuar a vender o que há, com base em parcerias com diversas fábricas. A narrativa é que a Jose "compra os melhores lotes" e dá aos seus fabricantes "as suas receitas". Nos rótulos, aparece a designação de "Produto de Portugal" ou "Take away Portugal". Pedimos a Elisabete Macedo para nos dar um exemplo dessas parcerias e que indique qual a lata mais popular da marca. A engenheira química agarra numa conserva de lulas em caldeirada, disposta em cima da mesa. O nome remete para uma receita tradicional portuguesa, na lombada lê-se "lulas de caldeirada".
No dia seguinte, viajo até à Casa Natal, mercearia histórica no Porto, pródiga em enlatados. Encontramos lá algumas conservas premium portuguesas. À vista, saltam umas "lulas recheadas" da Ramirez. Parece uma receita diferente das lulas da Jose Gourmet. Mas em baixo podemos ver que também usa o "em caldeirada". A marca Ramirez é conhecida, sobretudo, por concorrer nas conservas de baixo preço. A lata custa €2,50, menos de metade das lulas da Jose Gourmet, à venda por €5,40 no El Corte Inglés.
Em casa, faço a comparação. São de anos diferentes. A da Ramirez terá sido produzida há mais de três anos e daí a cor mais carregada. Fora isso, o que lá está dentro parece exatamente igual: molho de tomatada, recheio de arroz, cebola. Na boca, sabem ambas bem, mas é preciso alguma imaginação para sentirmos a "caldeirada". Uma investigação adicional mostra que foram feitas exatamente no mesmo sítio, a Conservas Cerqueira, de Pontevedra, na Galiza. A confirmação está disfarçada na própria lata: as marcas não são obrigadas a referir quem produziu, mas têm de ter na conserva o chamado código veterinário da fábrica, um conjunto de letras e números uniformizado dentro da União Europeia.
De imediato, percebe-se que os códigos da Ramirez e da Jose Gourmet são iguais — e ambos espanhóis. Fazendo uma busca no Google, encontramos a correspondência com várias marcas comerciais da Cerqueira: Buenos Dias, Pay Pay, Ramona. As lulas recheadas em caldeirada não aparecem, mas pelo menos a Pay Pay tem "chipirones en salsa americana", lulinhas de aspeto igual às da Jose e da Ramirez. Os ingredientes são também tal e qual. Ou seja, é fluído o receituário das conservas: passando a fronteira, uma "salsa americana" transforma-se numa portuguesíssima "caldeirada".
As dúvidas sobre a proveniência do produto não acontecem, assim, apenas nas bancas da grande distribuição. Nem apenas com a Jose Gourmet. Mesmo nas lojas de conservas é complicado rastrear o produto. As grandes empresas têm quase todas o seu departamento e as suas marcas de especialidades gastronómicas. La Gondola, Minerva (A Poveira), Porthos (Conservas Portugal Norte), Briosa (Conserveira Group), Júpiter, Good Boy, Manna (Conserveira do Sul), La Rose (Ramirez), Comur (Grupo Valor do Tempo) são exemplos de marcas nessa categoria. Mas acontece também comprarem matéria-prima fora do país e podem desmultiplicar-se em rótulos sem produzirem o que quer que seja.
A ProPeixe, por exemplo, é uma cooperativa de produtores de peixe de Matosinhos com vasta distribuição no país. Com uma imagem que podia ter sido feita por uma criança do 1.º ciclo, parece a coisa autêntica, rústica, bruta. Imaginamos barcos a atracar na doca, peixinho fresquinho a saltar das águas matosinhenses diretamente para a sede da empresa, ali ao lado. Nem tanto. Também ela tem as suas lulas recheadas — e também as suas lulas vêm do Norte de Espanha.
Isto não significa forçosamente má qualidade. Pelo contrário. As indústrias galegas, com quem a indústria portuguesa tem fortes relações, são das maiores, melhores e mais experientes do mundo. Só naquela região há mais de 60 conserveiras, o triplo das existentes em Portugal. Daí também que Adriano C. Oliveira goste de falar na Ibéria como capital das conservas premium, e não de Portugal e Espanha separadamente. Nos mariscos, sobretudo, vem quase tudo de lá, mesmo se com marca portuguesa. Por um lado, ainda bem. "Cá é tudo emborrachado", atesta Luís Baena, chef cozinheiro que tem colaborado com a Jose Gourmet. "Os galegos trabalham muito bem os bivalves, rebentam na boca. Aquilo tem uma técnica própria."